Rifa-se um coração quase novo. Um coração
idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração moleque
que insiste em pregar peças no seu usuário. Rifa-se um coração que na realidade
está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar
sonhos, e cultivar ilusões. Um pouco inconseqüente que nunca desiste de
acreditar nas pessoas. Um leviano e precipitado, coração que acha que Tim Maia
estava certo quando escreveu... "não quero dinheiro, eu quero amor
sincero, é isso que eu espero...". Um idealista... Um verdadeiro
sonhador... Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém
sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração
insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um
furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um
coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra,
briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do
sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Este
coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes
impulsivo. Rifa-se este desequilibrado emocional que, abre sorrisos tão largos
que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz
murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta
de emoções fortes. Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver
intensamente e, contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida
matando o tempo, defendendo-se das emoções. Rifa-se um coração tão inocente que
se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que quando
parar de bater ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação
de contas: " O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, só errei
quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco
coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a
envelhecer". Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que
não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão
inconseqüente. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que, ainda não foi adotado, provavelmente,
por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o
estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração
humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo
cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se
modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. Um velho
coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e, a ter a petulância
de se aventurar como poeta. (Clarice Lispector)